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Guerra da fome, artigo de Newton Carlos

[Correio Braziliense] As previsões são aterradoras e tiveram circulação ampliada com a reunião num país africano de agências da ONU a cargo do assunto. O próprio secretário-geral deslocou-se de seu gabinete em Nova York. Juntou-se aos especialistas sob a imposição da necessidade de saber o que é real na enxurrada de declarações alarmantes. Vinha sendo acusado de que não estar a par do que se passa em unidades da ONU das quais dependem multidões sem recursos de auto-sustentação. A definição burocrática fala em “escalada da crise global de alimentos”, a partir do binômio escassez e preços em alta. Ou especulações nos mercados.

Há medos não registrados em documentos oficiais mas que foram usados de modo exaustivo, como espécie de aviso de choque, nos corredores, sem agendas formais. Guerra da fome, por exemplo. Ou mesmo Terceira Guerra Mundial, com disputas de alimentos à bala e em escala planetária. Como suportar aumentos de mais de 80% em três anos? Já se verificaram conflitos graves em pelo menos 20 países. O Banco Mundial diz que está sob ameaça a estabilidade de pelo menos 40 países e se mostra disposto a formar com a ONU um hospital de campanha em condições de atender necessidades de emergência. A ONU criou força-tarefa a cargo de ações imediatas.

Já acontece um racha significativo entre as instituições de elite agrupadas em Washington, na capital do império e no aconchego de bons salários e gabinetes de luxo, um dos núcleos da privilegiada burocracia internacional. O Banco Mundial responsabilizou políticas do Fundo Monetário Internacional (FMI) pelo que acontece com alimentos. A América Latina já tem seus pés nas áreas conturbadas. A Comissão para a América Latina e Caribe (Eclac, sigla em inglês) tomou por base o ano de 2007 e fez o aviso. Se o milho aumentar 15%, outros 16 milhões de latino-americanos ingressarão na pobreza. A questão foi discutida em duas conferências regionais: o Fórum Mundial para a América Latina (WEF) e a Conferência dos Partidos Políticos da América Latina (Coppal).

Também a FAO, organismo da ONU para a agricultura, tratou da questão em suas repercussões entre nós. Essa mobilização tem gancho no que aconteceu no Haiti e riscos de contaminação. A crise de alimentos provocou violentos motins de rua que acabaram derrubando o primeiro-ministro, o chefe do governo haitiano, portanto. Morreram pelo menos seis pessoas. Em El Salvador houve greve. Em Honduras, milhares de pessoas ocuparam as ruas da capital em protesto contra a elevação de preços e o neoliberalismo. A República Dominicana foi tomada por um descontentamento geral, sobretudo nas áreas mais pobres da capital.

Haverá eleições presidenciais no país a 16 de maio e o presidente Leonel Fernandez sofre em sua campanha de reeleição os impactos negativos desses acontecimentos. Seu rival, Miguel Vargas Maldonado, do Partido Revolucionário Dominicano, é o beneficiário. A chamada crise de alimentos já interfere, portanto, em processos políticos e de luta pelo poder em países latino-americanos. Na Argentina, caso bem mais robusto do que protestos e instabilidades em países menores da região, agricultores se rebelaram contra a decisão do governo de reter nas prateleiras nacionais parte dos produtos agrícolas que iriam para fora participar da farra especulativa. A FAO insiste em que o problema está na má distribuição de terras e que é preciso fazer reformas nos campos de cultivo.

E Cuba, onde se aplicou um “modelo revolucionário” de reforma agrária? Oitenta e quatro por cento dos alimentos são importados, exigindo gastos de 2 bilhões de dólares por ano. Dois terços da produção saem de um terço das terras em mãos de pequenos agricultores privados. Conclusão de que esses trabalham melhor, tanto que Raúl Castro se dispõe, como medida de incremento, a saldar as dívidas do Estado com eles. Seria o caso de fazer uma anti-reforma agrária, entregando mais terras aos que tiram mais dela? Pergunta que vai contra a maré, mas inevitável. Feijão é mais importante do que fuzil, diz Raúl, e anuncia medidas liberalizantes. A guerra da fome ainda não teve na América Latina repercussões como na África, mas já se instalou por aqui pelo menos a convicção de que se trata de algo com potencial planetário, exigindo medidas preventivas.

Oitenta por cento das crianças famintas estão no sudeste da Ásia e na África negra. O Banco Asiático de Investimentos estima em 1 bilhão o número de pessoas afetadas pelos preços dos alimentos. A ONU só pode sustentar suas operações humanitárias se contar com recursos suficientes. Os cálculos vão a 100 milhões de extras precisando de ajuda alimentar, e a força-tarefa em início de operações deveria contar com um orçamento de US$ 2,5 bilhões. Ainda não há sintomas de que os cofres dos ricos estejam dispostos a fazer um desembolso adequado — em fome, não; em armas, sim. O mundo nunca gastou tanto em armas. Vai a mais de US$ 500 bilhões só o orçamento do Pentágono, enquanto a Usaid, a agência americana de ajuda ao desenvolvimento, declara que está de bolsos vazios. Índia e Paquistão, com multidões de miseráveis, têm armas atômicas.

Artigo originalmente publicado pelo Correio Braziliense, 07/05/2008.