Capitão do Mato PhD, por Nancy Cardoso Pereira
Adital – Tem Capitão do Mato demais por ai! Todos PhD.
São contratados para perseguir quilombolas, identificar seu paradeiro no mundo e arrastá-los de volta aos senhores. Desfilam diante do olhar público com suas presas, casos, contradições. Voltam do mato diretamente para as telas da televisão e as páginas dos jornais com suas manchetes sensacionais: negros fujões, quilombolas de mentira, arbítrio de auto-intitulados, fraudes antropológicas!
Capitão do Mato conhece bem o mato, é estudado, conhecedor do problema e pode até mesmo ser também um escravo (funcionário! burocrata! serviçal!): geralmente são homens livres pobres que trabalham em favor dos interesses patrimoniais dos senhores… Estamos falando de escravos libertos, que se prontificavam a participar da repressão institucionalizada contra a fuga de escravos, sendo estratégicos para isso justamente porque conhecem a discussão, o conflito e as táticas de fuga. São agentes sociais ambivalentes, cuja presença é notada, suportada ou utilizada pelas autoridades: pode ser o governo de FHC, como o Capitão Souza Martins, pode ser a UDR, como o Capitão Rosenfield.
Dizem os estudiosos que havia no provimento do cargo de Capitão do Mato a explicitação de um critério de aceitabilidade para o serviço: em seu ofício policial o capitão do mato adquiria um meio de sobrevivência e prestígio vigiado e autorizado pelos senhores locais, em troca de sua perícia em controlar ou conter revoltas e fugas de escravo.
Aí está o Capitão do Mato PhD em seu ofício policial: publica livros dizendo que a história não é bem assim, que escravidão existem outras, que Zumbi não foi Zumbi, Palmares não foi Palmares, trabalho escravo não é trabalho escravo; escala os latifúndios acadêmicos com sua corda de laçar “revoltosos”; denuncia movimentos sociais de classe média e branca como “inventores do quilombismo”. O Capitão do Mato pensa que tá podendo com sua “perícia” de doutor controlar o fenômeno quilombola, conter revoltas, reverter conquistas. Dizem que a lei inventa os quilombos e defendem os interesses de empresários, latifundiários, empreiteiros e piratas.
Os senhores entregavam suas armas aos capitães do mato como meio de defesa da ordem escravista, revestindo tal posição de algum prestígio, pois era um meio eficaz de se contrapor às ameaças ao patrimônio representadas pelas fugas de escravos e pela formação de quilombos.
As armas do Capitão do Mato hoje é a televisão e o PhD: arrotam suas descobertas apontando aqui e ali um bando de negros se auto-intitulando quilombolas, procuram indícios anti-antropológicos, esbravejam sua filosofia política de encomenda… Atrás do Capitão do Mato, vão repórteres de Ali Kamel procurando um ângulo de imagem que não revele a miséria escravocrata do Brasil.
O Capitão Souza Martins – PhD sociólogo da USP- diz que:
A potencial transformação de todo negro em quilombola, para, em nome dessa condição, reivindicar a terra de trabalho, é uma aberração desnecessária em política social e uma mutilação descabida na política de reforma agrária. (O Estado de São Paulo, 21/8/2007)
O Capitão Rosenfield – PhD filósofo da UFRGS – quer saber:
Paradoxalmente, a Igreja, que tanto fez para a formação deste país, está sendo vítima de suas próprias ações de invasões de terras, sob a bandeira da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Aliás, qual é a posição da CPT a respeito dessa “desapropriação”? (O Estado de São Paulo, 29/10/2007)
A CPT, Capitão? Acabou de realizar o Encontro Nacional de Formação com o tema “Territorialidade e Quilombos” (Goiânia, 26 a 28 de outubro de 2007). Sob o lema “No chão é que se faz comunhão”, a CPT reuniu 150 pessoas, entre agentes da CPT, lideranças e representantes de comunidades quilombolas dos estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás. Durante os três dias de Encontro, os participantes discutiram a resistência da culturalidade afro-brasileira; a territorialidade e as políticas públicas e governamentais e tiveram um momento de troca de experiências com os quilombolas, ouvindo suas histórias de dificuldades, as conquistas e as propostas de articulação. Assim…, em breve, a CPT socializará seu Manifesto Quilombola e poderá ser uma presença pastoral mais forte e aprendiz da comunhão.
Quilombo… favela… favela… quilombo.
O quilombo? A favela!
O quilombo é a favela?
A favela é o quilombo?
Vá em frente escravo!
Esconda-se do chicote do capitão-do-mato.
Vá em frente operário!
Esconda-se do revolver do soldado.
O aumento do salário operário será que diminui a inflação?
Escravo, escravo… vamos!
Fuja para o quilombo e encontre proteção.
Operário, operário… olhe!
A saída da favela é a sua ambição.
Operário… escravo!
Soldados… capitães-do-mato!
O que mudou… nada mudou!
Ou será que piorou?
www.quilombomoderno.org
(para saber mais sobre a história: Entre Escravos e Senhores: a ambigüidade social dos capitães do mato http://www.espacoacademico.com.br/039/39ebezerra.htm)
Nancy Cardoso Pereira – Pastora metodista. Coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra
artigo publicado pela Agência de Informação Frei Tito para a América Latina e republicado no EcoDebate.com.br