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Araguaia-Tocantins – fragmentos de 20 anos de luta pela terra, por Rogério Almeida

[EcoDebate] É lugar comum dedicar aos anos redondos algumas linhas. Seja no sentido de exaltar ou de oposição. No ano de 2007 alguns fatos relacionados com a luta pela terra no Pará somam duas décadas. Faz 20 anos que o primeiro projeto de assentamento (PA) da reforma agrária no sudeste do Pará foi criado, o Castanhal Araras, no município de São João do Araguaia. Mesmo tempo do assassinato do advogado ligado ao PC do B, o deputado Paulo Fonteles, reconhecido pela militância junto aos camponeses (as). Ao longo das duas décadas ocorreu no sul e sudeste do Pará uma reconfiguração que passa pela dimensão física, política, social e econômica, com a efetivação do campesinato na fronteira.

Período igual de vida tem a obra Oligarquia dos Castanhais, assinada pela professora Marília Emmi, da Universidade Federal do Pará (UFPA). A dissertação de mestrado defendida no Núcleo de Altos Estudos da Amazônia (NAEA), sob a orientação do professor Jean Hébette, recupera que elementos políticos, sociais, jurídicos e econômicos concorreram para a construção da oligarquia no sudeste paraense.

Ainda hoje a obra é leitura indicada aos que buscam compreender a aguda disputa pelos recursos naturais e território na região celebrizada sob a lente triste onde mais se matou camponeses no Brasil. Na fronteira agro-mineral concorrem índios, empresas mineradoras, fazendeiros, madeireiros, camponeses de toda ordem, com terra ou ocupantes e garimpeiros.

Ao longo dos séculos é o extrativismo que tem regido o diapasão da economia amazônica, ou saque, como preferem alguns. É o almoxarifado a condição irreversível da região? Cá aflui a tecnologia de ponta de uma das principais mineradoras do mundo, a Companhia Vale do Rio do Doce (CVRD), com formas rudimentares de cultivo. Locus onde não raro trabalhadores são libertados aos montes do cativeiro da terra, escravizados para amansar a floresta, que cede cada vez mais cede lugar ao gado e a monoculturas.

Na região a floresta arde em carvoarias para a produção de carvão vegetal que alimenta siderurgias no Maranhão e Pará. Pedaço de chão onde se agita um “movimento” separatista ancorado num discurso emocional, que visa ao calor de cada eleição a criação do estado de Carajás. O mesmo se dá a oeste e sul do Maranhão. Uma terra marcada por passivos de todos os vernizes.

Numa viagem no quente rincão, em todos os sentidos, assalta-nos uma paisagem de terra arrasada. Nas serrarias montanhas de resíduos de madeira ladeiam as oficinas. Nas rodovias estaduais e federais cerca e pasto entediam qualquer viajante. Ao longe o gado busca sombra sob a torre de alta tensão do linhão da hidrelétrica de Tucuruí, que alimenta empresas de produção de alumínio no município de Barcarena, no Pará, controladas pela CVRD, e na capital do Maranhão, São Luís, de propriedade da americana ALCOA.

Uma foto em 3X4 do que foi a conquista da fronteira, baseada em pólos de produção: madeira, gado, energia, mineração e siderurgia. Estado e o capital nacional e internacional dançavam de mãos dadas numa trilha sonora econômica marcada pelo planejamento pragmático.

Terra arrasada – dias de luta
Para que um território seja construído outro deve fenecer. Tem sido assim ao longo das eras a eterna construção e a desconstrução dos territórios e a alternância de poder. Assim, sob o decreto de número 3938, no dia 15 de janeiro de 1987, numa área de 5.058.4728 hectares foram assentadas 92 famílias do que veio a ser o primeiro PA da reforma agrária no sudeste do Pará, o Castanhal Araras, localizado no município de São João do Araguaia. Dava-se o início da desconstrução do que ficou conhecido como polígono dos castanhais. Fruto de atos de ocupação por posseiros da terra indígena do povo gavião e inúmeros acampamentos em órgãos públicos.

Cupuaçu, castanha do Pará, pupunha, açaí constavam na flora do lugar. Um experimento de modelo de organização social e política através de fomento de caixa agrícola, organização de movimento de mulheres, realização de festival ecológico foram realizados no PA Araras, 40 km de Marabá. A ONG Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (CEPASP) foi um dos principais animadores no PA.

Pelo pioneirismo a comunidade acabou por servir de berço a vários dirigentes que ocuparam e ainda ocupam cargos na Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Pará (Fetagri) e na central de cooperativas da região. Conseguiu eleger vereadores e até um vice-prefeito. A experiência de Araras se alastrou para os municípios vizinhos de Nova Ipixuna e Eldorado do Carajás.

O prognóstico na fronteira não previa a permanência do campesinato. Sucedia afirmar que o mesmo seguiria em itinerância cedendo lugar à “eficiência capitalista”. Mas, o que se desnudou no sudeste seguiu o sentido contrário. Até fevereiro de 2006 a Superintendência Regional (SR) 27 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), contabilizava 450 PA´s no sudeste e sul do Pará, além de cem áreas em avaliação para desapropriação.

O universo de 58.152 famílias se espraia por 14.753419.1623 hectares, o que corresponde a 52% do território de 36 municípios do sul e sudeste do Pará, gerenciados pela SR-27, INCRA de Marabá. Os dados do INCRA indicam um déficit a menor de 26.909 famílias. À primeira vista tem terra sobrando. Então o que falta para ocorrer a distensão? Sabe-se que cortar a terra (demarcar) é apenas um passo. Mas, há como inverter a agenda de pesquisa dos institutos, coadunar ações conjuntas das diferentes esferas do poder público com vistas a melhorar a qualidade de vida do assentado (a), ainda prenha de precariedade? Defende-se que a região deva ser ocupada por cientistas, que o conhecimento preceda os sistemas de uso dos recursos naturais, mas questiona-se: que ciência cara pálida, para quem? Aos alinhados ao capitalismo agrário, não tem sentido a efetivação de PA´s, aos olhos deles, uma mera representação do atraso ou favelas rurais, como preferem.

A territorialização camponesa iniciada ao apagar da luzes da década de 1980, além da dimensão física registra a construção de representações políticas e institucionais. Como a efetivação de uma regional da FETAGRI, o MST e a recentemente criada Federação dos Trabalhadores Rurais na Agricultura Familiar (FETRAF). Trata-se de uma cidadania conquistada e não concedida, que ultrapassa os limites da mera análise física da reconfiguração da região. Considera-se prudente ponderar sobre o reconhecimento político, social e econômico da categoria.

Tem-se registro da Escola Família Agricultura (EFA) dedicada aos filhos (as) dos assentados (as), com sede em Marabá, a edificação de cooperativas e associações de produtores e prestadoras de assistência técnica, aos moldes da COOPSERVIÇOS, ligada à Fetagri, bem como a mobilização de uma organização de combate a impunidade no campo, como o Comitê Rio Maria. Instituição que conseguiu levar a julgamento os assassinos dos militantes Expedito Ribeiro e João Canuto, ainda que a luta tenha ultrapassado a casa de uma década. Mas, a naturalização das mortes de camponeses (as) e a impunidade tem sido a regra.

Ainda na esfera da educação a primeira turma de Pedagogia foi formada ano de 2006, e encontra-se em curso primeira turma de Agronomia, com o debate da formação de uma turma de Letras. Ainda que insuficientes tem-se políticas de crédito para fomento, produção e moradia. Como se nota, são direitos garantidos pela Constituição e somente efetivados através de mobilizações. O que há demoníaco nisso? Qual o sentido da parcialidade nos meios de comunicação de massa sobre a ação da categoria, o de criminalizar a ação da mesma? Os ricos fazem lobby, os marginais mobilização.

A memória é outra dimensão do processo de territorialização, como a nomeação de PA´s e ocupações com nomes que lembram chacinas e mortos na disputa pela terra. A exemplo do PA 17 de Abril, em memória do Massacre de Eldorado, Paulo Fontelles, Gabriel Pimenta, ambos advogados, José Dutra da Costa (Dezinho), militante da FETAGRI assassinado em 2000, no município de Rondon do Pará, a ocupação 26 de Março, que homenageia os militantes assassinados do MST “Fusquinha” e “Doutor”, PA Pe Josimo Tavares, PA Expedito Ribeiro, entre tantos. Registre-se ainda que locais marcados por chacinas de posseiros na década de 1980, a mais sangrenta, são hoje PA´s, como o Castanhal Cuxiú e Ubá e a fazenda Princesa.

Na dimensão política tem-se a exoneração de dois superintendes do INCRA de Marabá, Petrus Emile Abi-Abib e Victor Hugo da Paixão. Bem como a participação dos representantes dos assentados no processo de definição do Programa Operacional (PO) da SR-27 que até 1997 era definido a portas fechadas entre prefeitos e técnicos do INCRA. Verifica-se a participação dos dirigentes na disputa por cargos nos legislativos e executivos municipais, que tensiona o status quo nos rincões.

Se antes não se decidia um pleito eleitoral sem a mediação da família Mutran, -o tronco familiar com maior robustez no tempo dos castanhais- registra nos dias de hoje um refluxo. Atualmente não tem nenhuma representante na Câmara Municipal de Marabá, e não goza de quase nenhuma influência nos pleitos do executivo. Na derradeira eleição a representante da família, a ex-deputada estadual Cristina Mutran, saiu como vice numa chapa encabeçada por também ex-deputada estadual Elza Miranda, que conseguiu somente o terceiro lugar. Bem como a perda do único assento na Assembléia Legislativa. A fazenda Peruano, localizada no município de Eldorado do Carajás e a Cabaceiras, localizada no município de Marabá estão ocupadas pelo MST. As mesmas constam no livro da “lista suja” do trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho (MPT), assim como a Mutamba. A fazenda Cedro também em Marabá foi repassada ao banqueiro Daniel Dantas, que tem adquirido inúmeras fazendas na região com o maior rebanho de gado do Pará.

Se nas décadas pretéritas o universo camponês do sudeste paraense era povoado por vários mediadores, como a Igreja Católica através de suas Pastorais e as Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s), o Movimento de Educação de Base (MEB), partidos políticos legítimos e clandestinos, ONG´s, Universidade Federal via o programa do Centro Agro-ambiental do Tocantins (CAT), tem-se hoje uma apropriação do discurso pelo próprio ator social, o camponês, motivo de inquietação de um cipoal de pesquisas.

Sublinhe-se que no início da desapropriação dos castanhais era o ministro da reforma agrária nada mais, nada menos que o senhor Jader Barbalho, no então governo do presidente José Sarney, instantes da redemocratização do país. A corda e a caçamba. A pasta da comunicação tinha como titular o finado ACM. Era ou não era uma linha de ataque capaz de causar terror a qualquer defesa? Cumpre pontuar que o processo serviu mais para oxigenar a vida econômica dos coronéis, onde a luta dos posseiros de São João do Araguaia foi assim desvirtuada do seu sentido original.

Dias em que os latifundiários mobilizados no que ficou conhecido como “Centrão” fez radical oposição ao Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Radicalização que ganhou aspectos de esquadrão da morte através de sua entidade de representação, a União Democrática Ruralista (UDR), que tinha (tem) como timoneiro o goiano Ronaldo Caiado. O Bico do Papagaio, sudeste do Pará, oeste do Maranhão e o norte do atual estado do Tocantins, saiu do anonimato neste período. Região imortalizada pelas inúmeras chacinas e execuções de camponeses (as) e seus pares.

Nos anos de 1987/1988 foram desapropriados 24 áreas/castanhais para fins de reforma agrária. Já entre 1989 a 1991 experimenta-se um imobilismo com a efetivação somente de sete PA´s. Ao se investigar o período que compreende entre 1992 a 1995 são criados 33 PA´s. É a ação reativa do Estado ante o Massacre de Eldorado de Carajás que ativa a criação massiva de PA´s na região. No período entre 1996 a 1999 são criados 202 PA´s, 44.8% do total de 450 PA´s. Dias do governo de Fernando Henrique Cardoso, que reconheceu numerosas áreas ocupadas na Amazônia como PA.

Já entre 2000 a 2005 criam-se 184 PA´s, o que equivale a 40.8%. O Massacre de Eldorado do Carajás é o estopim para efetivação de inúmeras instituições. No momento o posto avançado do INCRA ganha o status de superintendência regional, Polícia Federal e Ministério Público Federal são instalados na tensa fronteira amazônica. Mesmo modelo realizado no Xingu após o assassinato da missionária estadunidense Dorothy Stang, região para onde se desloca a violência antes concentrada no sul e sudeste do estado.

Se num sentido na década de 1990 por vários fatores internos, como a luta pela terra e as chacinas de Corumbiara, Rondônia (1995) e o Massacre de Eldorado do Carajás, Pará (1996), e a externos, como a política mitigadora de reforma agrária do Banco Mundial, com vistas a assanhar o mercado de terras e a distensionar a luta pela terra na América Latina, Ásia e África o tema da reforma agrária vigorou na agenda política do governo; em oposição os eixos de integração desenhados pela macro-política econômica (energia, comunicação e transporte) operaram no sentido oposto da demanda dos movimentos sociais do campo.

Efetiva-se em sua contradição a territorialização camponesa, marcada por pelo menos em dois pilares. O de semblante camponês, a luta pela terra; e o segundo pelo processo capitalista, com a mercantilização da terra em detrimento de sua função social, como desejavam os camponeses (as).

Interroga-se: INCRA e as entidades de classe dos trabalhadores (as) possuem pernas para administrar o vasto universo de assentamentos? Sabe-se que o apogeu da ação comunitária da luta camponesa dá-se no processo de organização e ocupação de áreas consideradas improdutivas, e que ao “cortar a terra” verifica-se o retorno da cultura do individualismo. Realidade tanto ativada pelas políticas públicas, quanto pela cada vez mais presente igrejas neo-pentecostais em ocupações e assentamentos, que ancoram o seu discurso numa perspectiva da prosperidade individual.

Como reflete o poeta Leminski, “problema tem família grande”. É certo que ocorre ainda a crise de legitimidade de dirigentes e entidades de representação de classe, disputas internas, processo de diferenciação no interior de ocupações e assentamentos. E ainda a presença de pessoas consideradas “infiltradas” do Estado e do setor privado que monitoram as ações nas áreas, como registrado no ano de 2001, quando um serviço do Exército Brasileiro foi descortinado em Marabá. O mesmo tinha a missão de monitorar a agenda das entidades ligadas à defesa da reforma agrária, meio ambiente e direitos humanos. Ainda que tenha havido uma audiência pública em Marabá através da Câmara Federal, nunca mais se ouviu falar no assunto e não se tem conhecimento de algum desfecho.

No mesmo ano ocorreu um recrudescimento da violência pública e privada na região, com registro de inúmeras mortes, prisão de dirigentes e uma sistemática ação de reintegração de posse. É a precariedade uma marca do universo camponês, que muitas vezes não resiste e repassa seus lotes a comerciantes e médios e pequenos produtores, que reconstroem os minifúndios. Sabe-se de casos de fazendeiros oferecendo suas terras para desapropriação no INCRA. Na imbricada engrenagem da delicada questão fundiária amazônica quem ganha com a efetivação de tantos PA´s ? E a massa de camponeses (as) terá capacidade de construir um modelo de desenvolvimento a partir dos PA´s? Será possível a definição de políticas para a região sem uma regularização fundiária, sem um zoneamento econômico e ecológico? A sobreposição marca a cartografia do lugar, com PA´s em áreas indígenas, por exemplo.

É certa a conquista política da categoria ante o Estado marcado pelo autoritarismo numa área de fronteira militarizada por longos anos. Migração espontânea e estimulada através de projetos de colonização oficial e privado, grandes projetos e garimpos são fatores pontuados como estimuladores de migração na região. Impregnada de maranhenses, estado considerado o principal exportador de tensão social do país, como reflete o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida.

Dos 19 mortos do Massacre de Eldorado do Carajás, 11 eram do Maranhão. Eles (as) estão nos PA´s, na coordenação de entidades de classe. São alvos de preconceito na região através de piadas que os relacionam a questões pejorativas. Mesmo preconceito existente entre paraenses e amazonenses. Mesmo tratamento pejorativo que ganha relevo nos meios de comunicação regionais quando tratam da luta pela terra, onde “sem terra” é relacionado a coisas desagradáveis. Ainda não se tem notícia da construção de um espaço de visibilidade para produção camponesa, como o fez o latifundiário, que celebra seus bois há mais de duas décadas, na principal feira agropecuária regional, a de Marabá.

Eis o posseiro alçado a condição de assentado da reforma agrária, reconhecido pelo Estado. Fato que inverteu o cotidiano das entidades de representação dos camponeses, com agenda repleta de reuniões com órgãos públicos, guinando-as a uma tarefa burocratizada em detrimento de uma agenda política. Em meio à criação do Distrito Florestal de Carajás, ainda um bicho anuviado no horizonte, que à primeira vista soa como um mero socorro aos produtores de gusa que ao longo de duas décadas corroboraram no desflorestamento da região e não cumpriram acordos no sentido oposto. Prestes a tornar o mundo degradado em monocultura de eucalipto. Uma vez mais o socorro vem do Estado via o BNDES. Antes foi a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), atual Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA).

Rogério Almeida é mestre em planejamento pelo NAEA/UFPA, autor do livro Araguaia-Tocantins: fios de uma História camponesa/2006. Colabora com a rede www.forumcarajas.org.br e com o EcoDebate.

publicado pelo EcoDebate.com.br – 27/08/2007