(bacia do Alto Parnaíba) Zona Fantasma, por Mayron Régis
Os projetos de infra-estrutura e seus defensores fazem charme para a platéia. Vem com espalhafato; eles cantam o hino nacional, rezam ave Maria e pai nosso, abraçam os populares e distribuem chuteiras, camisetas e bolas para o time da cidade. Vão embora depois de percorrerem as ruas da cidade e de recusarem convites para tomarem um café naquela casa e naquela outra; vão embora prometendo voltar depois com bastante dinheiro e trabalho. Em suma: progresso. – progresso para todos em vez de só para A ou B ou C. Progresso para você, para seu vizinho, para o vendedor de doces e para o dono da farmácia. Como são tantas as promessas, e um político não dá conta de prometer tanto, os políticos sempre andam juntos para dividi-las, mesmo sendo de partidos adversários. E já trazem a tabuleta com os dados do projeto, quais são as construtoras, quem financia, quantos empregos e as datas de começar e de terminar. Esta tabuleta será o máximo de informações a que as pessoas da comunidade terão direito pelos anos que dali pra frente enfrentarão.
Esses projetos incorporaram em si uma síndrome de zona fantasma ou zona morta. Dormitando em alguma prateleira ou em alguma geladeira da Eletrobrás, da CHESF, de Furnas e de empresas privadas de consultoria, de construção civil e de geração de energia, depois do boom dos anos setenta e parte dos anos 80, por conta da falta de investimentos, da baixa demanda de energia e da resistência de grupos indígenas, eles retornam da primeira para a segunda metade dos anos 90 – espanaram a poeira de cima dos volumes, mudaram os nomes e contrataram consultorias para os estudos de impacto ambiental, mas na essência continuaram os mesmos projetos de quando foram feitos anos atrás – os técnicos verificavam a vazão do rio, os afluentes, o tamanho da queda, o tipo de solo – as variáveis ambiental e social diferenciariam os projetos em viáveis e não viáveis, no entanto, ocorreu que as empresas de consultoria na hora de escreverem os estudos de impacto ambiental se baseavam em documentos já rodados de mão em mão pelo Brasil afora e envelhecidos – citavam e plagiavam – observava-se uma espécie vegetal típica da Caatinga no Cerrado – uma comunidade praticava os mesmos costumes sócio-culturais de uma outra – as tribos indígenas morreram e não souberam ou se evadiram. Acabados de sair da zona fantasma do planejamento do setor elétrico, os projetos de hidrelétricas transcorriam sobre uma pretensa “zona fantasma” onde quase ninguém morava e a biodiversidade era nula – uns três ou quatro gatos pingados, ora analfabetos, ora desinformados e, completamente, separados da realidade econômica e social da sua região e do país, que desmataram e queimaram toda a vegetação, caçaram todos os mamíferos, engaiolaram todos os pássaros e pescaram todos os peixes da região.
De modos que acrescendo uma espécie ameaçada de extinção; acrescendo que a população cresceu medianamente; acrescendo a inexistência de indústrias; acrescendo que a base alimentar continua arroz, feijão e mandioca, quando tem; e acrescendo que os sindicatos e associações de bairro são as principais formas de organização da região pesquisada em cima dos dados cavoucados do fundo do baú da pré-história dos estudos do setor elétrico, as empresas de geração e de consultoria omitiram as ou negaram o valor das peculiaridades sociais, econômicas, ambientais e culturais que engrenam ou engrenavam o modo de vida das populações tradicionais dessa região.
No item “Descrição da Ocorrência de Espécies Vegetais Raras ou Ameaçadas de Extinção” que comparece nos estudos relativos aos aproveitamentos hidrelétricos do Alto Parnaíba, de 2002, assinados pela CHESF e pela CNEC, a espécie mais representativa e em perigo da mata de transição Cerrado-Caatinga é a aroeira; os pesquisadores esticaram muito os olhos para esta transição, mas esticaram para cima e para os lados e não esticaram sobre a transição, não esticaram as pernas e os braços, porque se esticassem os olhos, os ouvidos, as pernas e os braços verdadeiramente estariam empreendendo a maior das aventuras e escreveriam não só aroeira como outras espécies ameaçadas pela ação antrópica. Esticando o item “Descrição…”, descreveriam a aroeira em suas íntimas vestes, descreveriam seus variáveis usos pelas populações, não só para a construção, descreveriam os seus parentes e afilhados, descreveriam sua vizinhança e descreveriam a sua florescência.
Nada disso. A abundância de generalizações dá um tom vago e dormente aos vários itens do estudo da CHESF e da CNEC. Quem lê acaba adormecendo ou pula as páginas. Aí topa com o item Patrimônio Arqueológico. Registra-se 823 sítios na bacia do Rio Parnaíba, a maioria do lado piauiense. Sim, e na área dos aproveitamentos? Um Complexo Arqueológico em Parnarama, estado do Maranhão. As dúvidas incriminam mais um item que nasceu em escritórios e não na pesquisa em loco.
Esses são dois pequenos exemplos das falhas de um estudo que veio para informar sobre a região onde estão projetados quinze aproveitamentos hidrelétricos no rio Parnaíba, no rio Balsas, afluente da margem esquerda do Parnaíba, e no rio Poti, afluente da margem direita. Como a bacia do Parnaíba banha dois estados, o Maranhão e o Piauí, a responsabilidade do licenciamento será do Ibama, mas fora uma outra informação, as autoridades do estado do Piauí segredam entre si sobre os aproveitamentos e guardam segredo até para o governo do Maranhão, seu vizinho e um dos maiores interessados.
Os aproveitamentos hidrelétricos, no rio Parnaíba, são: Aproveitamento Taquara, próximo à cidade de Alto Parnaíba (MA), 40 mW de potência instalada; Aproveitamento Canto do Rio Alto, Alto Parnaíba (MA), 76 mW de potência instalada; Aproveitamento Canto do Rio Baixo, entre as cidades de Tasso Fragoso e Alto Parnaíba, 70mW de potência instalada; Aproveitamento Ribeiro Gonçalves Alto, entre Tasso Fragoso e Alto Parnaíba, 201mW; Aproveitamento Ribeiro Gonçalves Baixo, cidade de Ribeiro Gonçalves (PI), 173mW; Aproveitamento Uruçuí, cidade de Uruçuí (PI), 164mW; Aproveitamento Cachoeira, entre as cidades de Floriano e Guadalupe (PI), 95mW; Aproveitamento Estreito, entre as cidades de Amarante (MA) e Floriano (PI), 95mW; Aproveitamento Araçá, entre o povoado de Castelândia e a cidade de Palmeirais (PI), 169mW; e Aproveitamento Castelhano, povoado de Castelhano (PI), 95mW. Os aproveitamentos hidrelétricos, no rio Balsas, são: Aproveitamento Buritis, entre as cidades de Sambaíba e Balsas (MA), 21mW; Aproveitamento Taboa Alto, entre as cidades de Sambaíba e Balas, 97 mW; e Aproveitamento Taboa Baixo, entre as cidades de Sambaíba e Balsas, 56 mW. Os aproveitamentos hidelétricos, no rio Poti, são: Aproveitamento Pedra do Castelo, Juazeiro do Piauí (PI), 14mW; e Aproveitamento Poti, Prata (PI), 33 mW.
Assoreamento à jusante da barragem, assoreamento da barragem, desenvolvimento de processos erosivos concentrados, perda de áreas agricultáveis, perda d’água para a atmosfera e qualidade da água são alguns dos principais impactos previstos com a construção desse complexo hidrelétrico no rio Parnaíba e seus afluentes – duas vertentes, água e solo – peças-chaves que, pelo diagnóstico presente no documento, dificultarão o funcionamento das hidrelétricas, encolhendo as suas vidas úteis em vários anos.
Por que, então, na assim chamada bacia do Alto Parnaíba em que se convencionou os alertas sobre assoreamento e sobre a diminuição do regime das chuvas, com áreas em franco processo de desertificação e com a agricultura familiar e o agronegócio disputando e se confrontando diariamente por recursos ora escassos, o retorno desses projetos para a pauta econômica e política, pelas mãos do governo do Piauí, sem que uma discussão preliminar sobre a vida útil do rio Parnaíba e seus afluentes seja travada de governo estadual para governo estadual e de governo estadual para sociedade civil? Esse fato evidencia uma afetação da parte das autoridades estaduais do Piauí – aquela coisa de farinha pouca meu pirão primeiro – os projetos são do governo do Piauí e o resto que venha a reboque.
Mayron Régis, jornalista/Fórum Carajás
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Publicação da Secretaria Executiva do Fórum Carajás
ANO V, Número 10 – São Luis, Ma, 20 de Março de 2006.
publicado no Ecodebate, www.ecodebate.com.br, 27/03/2006